Afinal, o que nível socioeconômico tem a ver com desempenho escolar?

“É quase impossível garantir o mesmo nível de aprendizado para alunos de alto e baixo nível socioeconômico.”

 

A sentença acima contempla duas possíveis linhas de pensamento.

A primeira reconhece achados solidamente estabelecidos na pesquisa educacional que indicam clara associação estatística entre nível socioeconômico (NSE) e os mais diversos indicadores educacionais das pessoas. Desempenho, nível escolar alcançado, ocorrência de repetência e/ou abandono, tudo isso costuma estar relacionado com as condições socioeconômicas das pessoas.

A segunda linha de pensamento propõe que as diferenças educacionais entre indivíduos são uma função e uma necessidade emanada da estrutura social, de classes. Assim, somente seriam reduzidas severamente as diferenças educacionais por origem social quando as desigualdades sociais fossem igualmente reduzidas.

Ainda que tenham contribuído para alertar contra um certo “otimismo ingênuo” presente há algumas décadas, quanto ao papel redentor da educação, as teses que circularam, e circulam, nas principais vias conceituais da sociologia da educação, desenvolvidas a partir de matrizes como o casamento entre teoria social funcionalista francesa e marxismo, ou mesmo inspiradas por interpretações do Relatório Coleman, padecem da falta de demonstração empírica robusta.

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Afinal, há alguma lei férrea que afirme a indissociabilidade entre NSE e desempenho escolar? Essa associação – verificada em inúmeros estudos – se mantém estável ao longo da história? É invariável através dos contextos nacionais ou regionais? É imune a políticas deliberadamente dedicadas a reduzi-la? Apresenta redução diretamente explicável pela redução de desigualdades socioeconômicas?

A resposta a todas essas perguntas é não.

 

Nível Socioeconômico X Atributos Individuais

A “lei” da indissociabilidade entre NSE e desempenho/trajetória escolar enfrenta, desde sua origem, resistências e críticas severas, sobretudo pela pequena parcela da variação nos indicadores educacionais passíveis de serem explicados pelo NSE. Tudo bem que o NSE é usualmente o mais forte fator explicativo das diferenças educacionais, mas apenas quando desprezamos atributos individuais.

Dizendo de outra maneira: os modelos explicativos, por exemplo, do desempenho em testes educacionais padronizados apontam quase sempre o NSE como fator mais forte no condicionamento das diferenças entre estudantes. O problema é que eles deixam, também sempre, a maior parte da variação (algo em torno de 70%) inexplicado. Isso ocorre porque tais modelos não costumam incorporar medidas indicativas das capacidades dos indivíduos (capacidades sobretudo cognitivas), nem costumam contemplar alguma medida de base, bem precoce, desses estudantes testados.

Assim, o NSE se destaca na explicação porque faltam outras medidas, outras informações sobre as capacidades dos estudantes. O que acontece nos estudos em que tais informações individuais são incorporadas? O peso relativo do NSE desaba ou é bastante inferior aos atributos pessoais dos estudantes testados, que não podem ser reduzidos a variáveis socioeconômicas.

 

Equidade social na educação

Há boas demonstrações de que a força explicativa do NSE sobre as diferenças educacionais varia de sociedade para sociedade e também no tempo. A tendência é que sociedades que se tornam mais modernas e incluem parcelas crescentes de suas populações no acesso a sistemas escolares, que equalizam progressivamente a oferta escolar disponível a seus cidadãos, apresentem redução do peso do NSE e aumento do peso das capacidades individuais de seus membros na definição das oportunidades da vida.

Abaixo, vídeo feito para divulgação do estudo Excelência com Equidade, feito em 2012 pela Fundação Lemann e Itaú BBA.

 

Mesmo considerando essa tendência geral, a variação entre países ou mesmo entre regiões de um país, pode ser grande. Assim, o desempenho geral de um país ou região em testes educacionais, como o PISA, varia não apenas quanto à média que alcançam, mas também quanto à homogeneidade de seus resultados internos. Por exemplo, dois países de desempenho médio parecido no teste podem apresentar variações muito diferentes entre seus “melhores” e “piores” estudantes. Ambos, o desempenho médio e a variação (dispersão) entre os resultados individuais podem estar mais ou menos fortemente associados com o NSE. Alguns países costumam ser tomados como exemplo, dado que a variação no desempenho de seus alunos é fracamente associada ao NSE dos mesmos.

Ou seja, o NSE tende a enfraquecer seu peso no condicionamento das diferenças educacionais, à medida que sociedades ampliam e equalizam suas ofertas escolares. Isso varia no tempo e no espaço, o que significa que políticas educacionais distintas, além de alguns fatores culturais, são capazes de forjar um modelo de equidade social na educação, mas também podem preservar a força da origem social. Na prática a “lei de ferro” é fraca. Um modelo de sociedade justa, para os padrões ocidentais modernos, é aquele em que indivíduos têm suas oportunidades marcadas menos pelas diferenças de origem social e mais por seus atributos pessoais, em acréscimo a arranjos redistributivos que promovam a elevação do bem estar de todos. Nesse modelo, a educação escolar joga papel decisivo na abertura de leques de oportunidades aos indivíduos e na promoção de regimes de colaboração e coesão social compatíveis com nossos padrões civilizatórios.

 

Equidade/Qualidade em educação

Algumas iniciativas vão sendo experimentadas, na busca de fazer de sistemas escolares um certo contraponto a tendências iníquas das sociedades. A sentença que originou esse pequeno texto pede que se trate dessa questão, especialmente em países como o Brasil, onde a desigualdade de oportunidades escolares é intensa e, até onde sabemos, parece bastante afetada pela origem social dos indivíduos. Aliás, o Brasil pode ser usado como evidência de que não há uma linha direta entre redução de desigualdade socioeconômica – de renda e acesso a bens – e redução da desigualdade escolar. A desigualdade social no Brasil recente sofreu redução, mas essa não foi acompanhada de algo equivalente na educação.

Ao longo do século XX e até hoje, diferentes políticas foram sendo testadas, na tentativa de que as oportunidades promovidas pela escola sejam menos afetadas pela origem social de seu público. As chamadas políticas compensatórias procuram concentrar recursos em escolas e estudantes que, presume-se, sejam mais vulneráveis a condições sociais adversas. Políticas de distribuição de estudantes entre unidades educacionais que se contraponham a mecanismos seletivos de base socioeconômica (“loterias” de vagas, cotas) são outra linha possível que vem sendo tentada. Políticas atentas a aspectos de segregação residencial ou por outras características adscritas são igualmente observadas.

A busca de equacionamento do dilema equidade/qualidade em educação não permite referendar o determinismo representado pela frase que originou essas linhas. As evidências empíricas e o avanço conceitual dos estudos educacionais também não.


Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (1982), mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992) e doutorado em Sociologia pelo IUPERJ (1998). Atualmente é professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Coordenador do GT Educação e Sociedade da Sociedade Brasileira de Sociologia, desde 2004. Coordena grupo de pesquisa interinstitucional denominado "Estudo sobre os Determinantes Socioeconômicos, Raciais e Geográficos das Desigualdades no Sistema de Ensino". Integra grupo interinstitucional de pesquisa "Observatório das Metrópoles" e coordena Observatório Educação e Cidade (Edital INEP/CAPES 2010). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Sociologia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: sociologia da educação, política educacional, teoria sociológica, avaliação de políticas públicas e avaliação educacional.

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