Alfabetização para o desenvolvimento pessoal e coletivo

Em 2014, o Brasil tinha pouco mais de 23 milhões de alunos matriculados no Ensino Fundamental, em escolas públicas. No entanto, 22,7% dessas crianças e jovens estavam com idade superior à esperada para as etapas escolares. Isso significa mais de cinco milhões de estudantes com distorção idade-série, um indicador que expressa a proporção de alunos com dois anos ou mais de atraso escolar.

Na origem da distorção idade-série encontra-se a ineficiência dos processos de alfabetização. Trata-se de uma espécie de efeito dominó: a criança entra no sistema educacional na idade certa, mas não é alfabetizada adequadamente e, por isso, acaba reprovada em algum momento, já que não consegue acompanhar o que lhe é ensinado. Dessa forma, acaba por se tornar um aluno defasado na relação entre idade e ano escolar.

Além da não aprendizagem, que é uma questão basicamente pedagógica, há também uma questão de fundo, que é a falha no gerenciamento do processo que permitiria identificar, em tempo real, a dificuldade do aluno e garantir-lhe o suporte necessário para superá-la. Esse apoio é responsabilidade dos dois universos da criança em idade escolar, a família e a escola.

Essas duas instituições precisam saber, sistematicamente, se o estudante aprende e o quanto ele aprende, se está na média de sua turma, se responde às demandas que lhe são feitas, se está feliz, se demonstra prazer ao fazer as tarefas, etc. Para isso, a família não precisa ter conhecimentos pedagógicos, não precisa ser letrada, basta observar e dedicar parte de seu tempo para conversar com a criança e se interessar pelo seu desenvolvimento. Perguntar sobre o que aprendeu, olhar o material, pedir-lhe para contar seu dia na escola e mostrar o que já sabe fazer são atitudes simples e que fazem toda a diferença na vida do estudante. A escola, por sua vez, tem a obrigação de conhecer o estágio em que se encontra cada um dos seus alunos, de forma a intervir a tempo de sanar as dificuldades e possibilitar o avanço que lhe foi prometido no momento de seu ingresso na vida escolar.

A defasagem cresce à medida que se avança na Educação Básica, já que as crianças, com algumas exceções, ingressam no sistema escolar na idade certa, mas nem sempre seguem o ritmo em que aumenta a exigência pela qualidade do uso da escrita e das habilidades em leitura, escrita e oralidade. Como a maioria das redes de ensino adota o ciclo de alfabetização para os três primeiros anos do Ensino Fundamental, o primeiro grande ponto de construção da distorção se dá no 3º ano, quando se torna viável a reprovação. Esse ano é uma espécie de barreira de represamento do fluxo. Muitas das crianças que vencem essa primeira barreira o fazem sem dominar plenamente aquelas habilidades e avançam com dificuldade até o 6º ano, quando cresce também a taxa de abandono, além da reprovação. O mesmo processo se dá na passagem do Ensino Fundamental para o Ensino Médio, onde estão as maiores taxas de distorção do sistema educacional.

No gráfico abaixo, com dados de redes públicas de ensino (MEC/2014), fica evidente essa relação entre os picos de reprovação e o aumento da distorção idade-série no Ensino Fundamental.

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Se houvesse acompanhamento mais próximo da vida escolar; se existissem ações eficazes para superação das dificuldades no tempo certo; se o aluno fosse visto em sua individualidade e totalidade, se reprovação e abandono fossem vistos como fatos anormais na vida de crianças e jovens; se os alunos deixassem de ser vistos como “culpados” pela não aprendizagem; se escolas e famílias deixassem de se acusar como responsáveis pelo fracasso e se juntassem para o sucesso; se… certamente poderíamos passar a tratar de temas que abordassem o futuro e não o passado, pois a distorção nada mais é do que um retrato da ineficiência de processos vivenciados, ao vivo e a cores.

A escola é o espaço social privilegiado para o desenvolvimento de crianças e jovens pela via do conhecimento e, embora goze de autonomia, ela não é soberana. A unidade escolar faz parte de uma rede de ensino cujo centro é a Secretaria de Educação, e está comprometida com o que chamamos de política pública educacional – um conjunto de ações e leis que imprimem os rumos da educação nacional, estadual e municipal. O novo Plano Nacional da Educação prevê a alfabetização de todas as crianças até o final do 3º ano do Ensino Fundamental, o que demanda uma verdadeira força-tarefa de todos os atores do sistema educacional para enfrentar os inúmeros desafios que se interpõem no caminho a ser seguido.

Um deles é a própria formação de professores alfabetizadores, carente da tradução do conhecimento teórico para a prática da sala de aula, que os ajude a superar os “nós” que travam o processo de aprendizagem dos alunos e a entender as especificidades e individualidades dos mesmos.

A legislação educacional expandiu a Educação Básica obrigatória a partir dos quatro anos de idade com ingresso na Pré-Escola, uma obrigação prioritária dos governos municipais, a cargo das Secretarias Municipais de Educação. Essa definição, ao promover a Educação Infantil como parte integrante do processo de formação, obriga as secretarias a reverem seu currículo sobre essa fase e a se perguntarem se a criança de cinco ou seis anos deve ou não ser alfabetizada. Isso leva a mudanças curriculares e à revisão de conceitos, pois para que essa antecipação realmente seja uma via de desenvolvimento que culmine com a alfabetização antes dos oito anos (o que é plenamente possível) é preciso equilíbrio na composição curricular sem, contudo, perder o valor do lúdico no processo de aprendizagem.

Muito ainda há a ser feito em nosso País, que abriga uma parcela significativa da população analfabeta. Precisamos, portanto, garantir que o acesso à escola (hoje, universalizado) seja também sinônimo de aprendizagem equitativa e desenvolvimento pessoal e coletivo.